Andei a pensar sobre o verdadeiro significado da expressão "vou partir", "vou partir de viagem", e fiquei surpreendido. Durante anos disse várias vezes esta expressão sem me aperceber do significado que estava por trás. E depois dei conta que nunca o tinha realmente percebido porque todas as viagens que fiz não tinham sido suficientemente longas para o entender. Foi quando comecei a sair para ficar longe de casa por vários meses seguidos que comecei a perceber que "partir" significa literalmente, uma sensação de quebrar os laços que nos prendem ao nosso quotidiano. "Partir" significa objectivamente "quebrar". Como quando um copo cai no chão e se parte. De "partir" a necessidade do toque diário de quem adoramos. De "partir" a sensação de pisarmos diariamente um solo o qual pensamos que somos donos. É de facto algo triste, mas também libertador. Não quer dizer obviamente que nos vamos esquecer de quem nos pertence ou a quem nós pertencemos, mas efectivamente algo muda. Limamos parte de nós, processo esse doloroso sem dúvida, mas que nos obriga uma vez mais a nos abrirmos perante o desconhecido, e a abraçarmos o potencial desconforto de caminharmos por lugares e rotinas a que nunca pertencemos. Viajar por longos períodos de tempo é um acto que nos amadurece como pessoa mas que implica obrigatoriamente ter que passar por este breve processo interior de reabertura perante o que é novo. Perante algo que a nossa mente terá certamente uma dificuldade inicial em catalogar, mas que tudo fará sentido quando regressarmos a casa.
Nas viagens muito longas geralmente os primeiros dias são os que definem o tom. É como tocar uma música ou pintar um quadro. Aquela tonalidade de som ou cor é crucial para definir toda a estrutura e cadência pela qual a obra vai seguir. O início de uma viagem é realmente tudo isso. Acumulamos durante meses aquela vontade enorme de querer voltar a sair do nosso roteiro local para variar em direcção ao roteiro global, e enquanto seguramos esta vontade e desejo, e seguramos, e seguramos mais ainda, no primeiro dia é quando libertamos toda esta força criada por nós e que vai ser crucial para nos elevar em direcção a patamares incríveis de aventura e descoberta. É tal e qual como o lançamento de um vaivém espacial, em que precisa daquela força bruta proporcionada pelo foguetão para o elevar em direcção à estratosfera. Os primeiros dias são isto mesmo. Contentamento puro e extasiante em modo propulsor.
Da mesma forma, o final da viagem é também algo de muito especial. Para um músico, tocar a última nota de forma acertada é fundamental para concluir a obra de acordo com os seus parâmetros artísticos. Se a última nota ressoa um pouco desafinada ou até mesmo com a intensidade errada, é o mesmo que um ginasta quando faz triplos mortais, ao aplicar a queda, se desequilibra, ficando com o corpo meio torto na sua posição final, sendo logo a sua pontuação desvalorizada pelos juízes. O mesmo se passa com uma grande viagem. No primeiro dia, a página ainda vai vazia mas ainda temos imenso tempo para preenchê-la. No fundo é como num jogo de futebol, quando ele começa temos 90 minutos para marcar golos, e acabamos sempre por levar connosco uma certa ansiedade de desejo por terminar com missão cumprida, seja ela qual for. No último dia de viagem, já temos a página toda preenchida e é altura de colocar o ponto final com maestria. Como a última palavra de um poema, ou como o colocar de uma rolha na garrafa de vinho, depois de termos acompanhado todo o processo de crescimento da uva até ao final das vindimas com as uvas colhidas nas mãos. A página está já de facto cheia. O guitarrista sabe que tem de terminar a música. E será em dó? Ou em Sol? Será com uma intensidade moderada, leve ou forte? Será em amarelo ou azul?