Usamos várias vezes a expressão "este é um lugar único no Mundo " para ilustrar algum lugar que nos tenha impressionado bastante. Mas se indagarmos bem, verificamos que muito provavelmente, haverá outros lugares no Mundo semelhantes morfologicamente falando. No entanto há um lugar que visitei, que com toda a certeza posso dizer, que é único no Mundo, pois tem uma morfologia tão própria que o posiciona num patamar completamente distinto de tudo o que há neste planeta. Estou a falar dos incríveis Lençóis do Maranhão, no norte do Brasil.
Este lugar surreal já estava na minha lista para visitar há bastantes anos. A primeira vez que vi uma foto dos Lençóis percebi o potencial fotográfico que a sua paisagem tinha para criar composições minimalistas. E sendo isso um dos factores que mais me atrai para fotografar, obviamente teria de fazer um esforço para visitar este lugar no norte do Brasil.
Estava eu a finalizar a minha visita ao estado da Bahia quando decidi seguir directo para o Maranhão através de camioneta. O Brasil é gigante quanto baste e por isso esta viagem durou praticamente 2 dias através do cerrado Brasileiro. Eu viajava com um Belga e um Francês que tinha conhecido durante a viagem e que assim que viram fotos dos Lençóis decidiram também vir conhecer este lugar. Organizamos então tudo e seguimos até à cidade de Barreirinhas onde a partir de lá se poderia visitar os Lençóis.
Este lugar, apesar de ter alguma visibilidade dentro do circuito turístico Brasileiro, geralmente é esquecido no vasto panorama turístico mundial, e ainda bem para nós, porque se o Mundo soubesse o quão magnífico é, as coisas seriam certamente diferentes. No entanto é um lugar que ainda vai sofrendo algum impacto com o turismo em massa Brasileiro. Em Barreirinhas víamos várias agências de Turismo por todo o lado a tentar pescar pessoas para fazerem as suas excursões, e nós, acabados de chegar, e sem conhecer bem as alternativas, acabamos por ser presas fáceis e compramos um lugar numa excursão de um dia até aos Lençóis. Nada mais errado..
Há dois tipos de viagem, a estereotipada e a genuína. A estereotipada é a superficial, massiva, quase por completo organizada por terceiros e com horários bem definidos e invioláveis. A genuína é o que nós quisermos, quando quisermos e o mais próximo possível da realidade local e não enclausurados em montras andantes, em que praticamente não existe suficiente interacção com o que está à nossa frente. Nesse primeiro dia decidimos seguir erradamente pela opção estereotipada porque, para dizer a verdade, a opção genuína não é algo que se reserve numa qualquer agência. Ela simplesmente acontece e há que ter paciência e um certo tempo para deixar que ela apareça.
Entramos por isso numa Agência e reservamos uma excursão para o dia seguinte. Nesse dia, basicamente juntou-se uma manada de jipes e pessoas todas em fila indiana para visitar os Lençóis. Não podia sentir-me mais deslocado...
Descrevendo sucintamente, os Lençóis do Maranhão são basicamente um deserto de dunas de areia muito singulares e, que nas épocas chuvosas, formam várias pequenas lagoas constituindo então uma grande e belíssima extensão de pequenos lençóis aquáticos numa área total de por volta de 150 mil hectares. São por isso no fundo uma imensidão homogénea de água e areia numa conjugação sublime e minimalista como não há igual no Planeta.
Quando finalmente chegamos às primeiras dunas, que faziam fronteira com a selva por onde tínhamos chegado, deparo-me com mais agrupamentos de turistas, todos nos seus jipes, todos parados no sopé da primeira duna, para daí terem um panorama geral de toda a imensidão de dunas e lençóis de água que havia pela frente. Eu estava boquiaberto e imóvel perante a grandeza deste cenário. Tinha-me conseguido abstrair de toda a multidão que rodeava esta gigante Mona Lisa, peguei na minha câmara fotográfica e embora estivesse refém de uma excursão, desatei a correr pelas dunas a dentro, de pontaria afinada, para tentar capturar o máximo possível de enquadramentos. Procurava grafismos em que a curvatura da linha representasse praticamente todo o conteúdo da composição, e que se deslocasse mais ou menos um centímetro que fosse, poderia deitar a perder toda a composição. Sem dúvida que uma sensibilidade certeira era o segredo, e eu sabia-o. Desde que aprendi, na minha formação académica em Design Gráfico e Fotografia, sobre a importância dos espaços vazios, constatei que é verdadeiramente através deles que conseguimos fazer com que toda a composição respire e potencie maior força a todo o conjunto. No fundo, é o mesmo que transmite a filosofia do Yin-Yang. Um copo só o é através da função do seu espaço vazio, pois é lá que irá estar o líquido a transportar. Numa composição gráfica o mesmo se aplica.
Naquele momento eu estava completamente distraído do Mundo e vidrado na fruição de querer obter as melhores composições possíveis. Mas aquilo tudo era demasiado para mim. É o paraíso para os minimalistas e nunca na vida eu conseguiria obter o que procurava na escassa hora que o líder da excursão nos deu para visitarmos livremente as dunas. E sentia-me angustiado por isso. Sabia que precisava de mais tempo e que teria de regressar.
Chegamos então ao final do dia e falei aos meus companheiros de viagem da minha intenção em aprofundar mais esta visita, pois este lugar era demasiado especial para deixar passar assim, e não seria com mais outra excursão que iria conseguir fosse o que fosse. Decidimos por isso abordar outra estratégia e seguir até outra povoação mais pequena do lado Este dos Lençóis chamada Atins e tentar a partir de lá entrar novamente nos Lençóis, mas desta vez de forma menos convencional. Nada de Jipes. Nada de Agências. Teríamos que caminhar e passar o dia todo por lá.
E assim foi. Pegamos então uma lancha de Barreirinhas até Atins pelo Rio Preguiças fora, naquela que foi uma viagem de um par de horas com o melhor cenário que a selva Brasileira tem para oferecer. Fiquei completamente surpreendido com o que via. Pensei que ia ser uma viagem completamente vulgar e acabou por se tornar outro dos pontos altos da minha viagem ao Brasil. De ambos os lados das margens o mato era cerrado, repleto de esguias e belíssimas Palmeiras que se atiravam rio a dentro como se quisessem mergulhar nas suas águas, formando de vez em quando pequenos portos de abrigo para os barcos coloridos das povoações locais, inseridas no meio da selva, poderem deslocar-se. Estar ali naquele manancial indescritível de selva com rios a confluírem uns nos outros sem qualquer sentido aparente, deixou-me completamente calado e encostado apenas a admirar o gratuito que era a beleza naqueles lados do Planeta. Tropicália era a palavra certa sobre a mística que ia no ar naquele momento. Durante anos andei a tentar graficamente passar para o papel aquilo que pensava ser este tipo de mística, e pela primeira vez naquele momento senti-o de forma nua, crua e presente. Simplesmente deixei-me ir calado durante toda a viagem a agradecer a não sei quem por estar ali naquele momento a sentir o que sentia.
Chegamos então a Atins, pequeníssima povoação com apenas algumas centenas de pessoas e aí fomos procurar o hostel que tínhamos reservado, e que na verdade depois constatamos para nossa surpresa, que era apenas um pequeno Bungalow com dois quartos no máximo e gerido por um jovem kite-surfer que decidiu assentar no paraíso dos ventos brasileiro para poder colocar em prática regularmente a sua arte de se elevar aos céus. O norte do Brasil é conhecido pela consistência dos seus ventos, daí ser o lugar ideal para praticar este desporto. O Bungalow, este, era tão pequeno que quando estava casa cheia, o dono era obrigado a dormir na cama de rede que montara entre as árvores no seu jardim.
Não podia ser mais perfeito. Atins podia-me dar o que as Agências de Turismo não podiam, genuinidade, e com isso ser a porta perfeita para voltar a entrar nos Lençóis. Tanto mais que logo de seguida, em conversa com o dono, ele sugeriu fazermos uma caminhada de um dia inteiro com um guia local que ele conhecia, e combinamos então marcar.
Enquanto aguardávamos por esse dia decidimos fazer algumas incursões para conhecer melhor o lugar onde estávamos. Atins é daquelas pérolas que estão na proximidade de serem famosas, e exemplo disso foi o número de empreendimentos que víamos em fase de construção. Não empreendimentos massivos e gigantes entenda-se, mas sim empreendimentos pequenos e de luxo. Talvez o que torna este lugar tão especial é o facto de ser tão exclusivo, ou seja, não há uma única estrada convencional de alcatrão para aí podermos chegar. O único acesso é de barco e logo por aí já limita e muito o grande tráfego turístico que encontramos antes em Barreirinhas. A gente caminhava pelo meio da povoação e sentíamos que estávamos a caminhar pelo meio da selva, não fosse tão evidente a quantidade de palmeiras e outras árvores que circundavam as casas. Para além disso todas as ruas eram em terra batida o que ajudava a enquadrar todo aquele lugar melhor numa ideia de selva. No meio dessas caminhadas vi pela primeira vez voar um bando de Maracanás a passar bem próximos de nós, de dorsal bem desenhada e peito para fora, com uma elegância nunca dantes vista num pássaro. Por mais que o tente descrever, ou por mais vídeos que a gente veja da National Geographic a mostrar Maracanás a voar, nada conseguirá transmitir a sensação de liberdade e sintonia que é presenciar ao vivo este bando de frágeis seres a espalhar exotismo tropical a cada adejar de asas, espalhando assim o verde e o amarelo que o sol reflecte nos seus corpos em direcção aos nossos olhos, tudo isto em algumas fracções de segundos e que nos fazem novamente acordar do que quer que seja que estejamos naquele momento a pensar ou a falar. Comecei pois a entender o porquê do gigante estádio de futebol do Maracaná ter o nome deste mítico pássaro tão famosamente representado na figura de Zé carioca da Walt Disney.
Chegou o tão aguardado dia marcado com o nosso Guia para partirmos à exploração. Ele foi ter connosco ao nosso alojamento e depois seguimo-lo pelo meio da selva que separa Atins dos Lençóis. De mata em mata, de charco em charco, com água já pelos joelhos, e já sem querer saber que tipo de animal é que poderia habitar no meio daqueles charcos onde pisavam os nossos pés descalços, aproximamo-nos das primeiras dunas. Era como se um enorme deserto aparecesse à nossa frente. Escalamos a primeira grande duna e aí apercebemo-nos realmente da imensidão e magia deste lugar. Estávamos em finais de Fevereiro e tínhamos passado pelas primeiras chuvas, daí as pequenas lagoas que se formam no meio das dunas terem começado já a encher. Se estivéssemos estado lá um mês antes possivelmente encontraríamos apenas as dunas e perderíamos parte do seu encanto proporcionado pela conjugação da areia com a água, formando assim as mais espectaculares piscinas naturais que alguma vez vi. À medida que íamos avançando pelos Lençóis a dentro as piscinas tornavam-se cada vez melhores. Puros desenhos minimalistas que nem o melhor dos Arquitectos poderia criar. Íamos parando para mergulhar e o desejo era continuar onde estávamos, mas sabíamos que havia milhares para explorar e por isso íamos passando de duna em duna, mergulhando de piscina em piscina. Boiando aqui, saltando ali.
A experiência de estarmos nestes lençóis de água é algo arrebatador porque estamos apenas rodeado de areia pura e água doce. Não se forma qualquer tipo de vegetação ou algas nas lagoas devido à aridez do seu meio. É pura água cristalina no meio deste deserto. Ou seja, não há peixes ou qualquer tipo de animal por perto. Apenas e só água doce e areia. A profundidade média nesta altura do ano andará à volta do metro de altura e a água é quente, bem quente. A temperatura perfeita para estarmos lá a simplesmente boiar e a agradecer por ter encontrado este lugar tão paradisíaco e tão singular.
Ao contrário da primeira vez esta incursão estava a ser a verdadeira experiência que eu procurava ter. Estávamos longe das hordas de turistas que visitavam este lugar a partir de Barreirinhas, e estávamos a fazê-lo com total liberdade e sem jipes. Tudo feito a pé e em contacto profundo com o ambiente local. Melhor estragava. Passamos horas e horas a vaguear por estas piscinas literalmente caídas do céu. Eu andava completamente agitado de máquina fotográfica em riste à procura da melhor linha de duna. O céu, este, estava preenchido com uma palete de nuvens perfeitas de cor completamente branca. Eram nuvens de formato bem sólido ao contrário daquelas já próximas do cinza, e que tendem a esfumar-se, perdendo com isso a estrutura dos seus contornos. Estas, ao invés, formavam autênticos castelos brancos a moverem-se consoante a vontade dos ventos, projectando nas dunas desenhos e sombreados pela passagem das mesmas contra a luz do sol. Eu era capaz de estar a enquadrar determinado ângulo e passado dez segundos, esse ângulo já não era o que tinha sido percepcionado anteriormente. Por isso eu tinha que jogar novamente com a direcção do vento e das nuvens para elaborar a composição pretendida e tornava-se por isso um desafio constante e estimulante.
Depois de finalmente, e passadas muitas horas, nos termos regalado com esta abundância de sensações, decidimos que estava na altura de voltar e parar na casa de um habitante local amigo do Guia para lá comermos algo antes de fazer todo o caminho de volta até ao alojamento. A sua casa estava isolada no meio da selva, junto ao perímetro das dunas e relativamente perto do mar. Vivia lá um casal com um grupo de crianças, seus filhos. Somos muito bem recebidos e direccionam-nos para comer num pequeno átrio de selva em frente à sua casa. Era uma família com poucos recursos financeiros, mas comida e boa disposição era algo que havia em abundância. Sentamo-nos à mesa e entregaram-nos uma variedade de pratos, a maior parte deles vegetarianos para meu agrado. A certa altura perguntam-nos o que queríamos beber, e aí pergunto se tinham água de coco, uma das minhas bebidas preferidas devido às suas propriedades isotónicas e energéticas. Eles responderam com um "claro" bem óbvio, ao mesmo tempo que se riam. Afinal estávamos rodeados de palmeiras recheadas de cocos por todo o lado. Nisto o Pai da família faz sinal a um dos seus filhos, um moleque com talvez 7-8 anos de idade e disse-lhe para ele escalar uma palmeira bem alta e atirar alguns cocos para baixo. Eu fiquei meio apreensivo porque as palmeiras eram realmente muito altas. Nisto o miúdo começa a trepá-las que nem um macaquinho como se fosse a coisa mais natural deste mundo, não fosse este o seu dia-a-dia. Em poucos segundos posiciona-se ele no topo da palmeira e começa a cortar os melhores cocos e a enviá-los para baixo, com a mesma facilidade de um cozinheiro que vai buscar uma malagueta a um molho delas dependuradas na parede da cozinha. Espectacular ver aquilo. Eu e os meus companheiros ficamos tão inspirados com aquela agilidade que logo de seguida começamos nós próprios a tentar escalá-las também. E ficamo-nos pelo tentar porque para se conseguir fazer tal coisa é preciso, digamos, ter um certo calo nas mãos. Não é mesmo nada fácil e nem tem tanto a ver com a capacidade da nossa força, mas sim pelo facto das palmeiras terem um tronco muito enrugado que traça as nossas mãos de uma ponta à outra, ficando logo com elas a doer como se tivessem sido cortadas.
Terminamos então este belo manjar e ofereceram-nos umas camas de rede para dormir uma sesta à sombra, que veio mesmo em boa hora. A vida era fácil naquele dia. Depois de um excelente descanso e de mais um abastecimento de água de coco para o resto da viagem, decidimos voltar ao trilho. O dia já ia longo e começava a escurecer. Despedimo-nos desta hospitaleira família e seguimos caminho, que ainda era longo, com talvez umas 4 horas de caminhada pela frente.
Já íamos a meio caminho quando efectivamente o anoitecer começa a tomar forma e gradualmente fomos ficando envoltos na escuridão. A temperatura era espectacular e nunca abaixo dos 30C. Caminhávamos pelo cimo de dunas na periferia dos Lençóis como se fôssemos homens do deserto. Não havia qualquer luz artificial ao nosso redor e por isso a leitura do céu era sublime. A Lua estava cheia e com a sua ajuda íamos decifrando o caminho de regresso. Abundavam boas conversas entre nós e íamos na certeza de regressar a casa repletos de contentamento depois de termos passado um dia totalmente despojado de artifícios e de complexidades. Este dia foi uma ode ao minimalismo, não só pelo tipo de paisagem que se afigurava à nossa frente, mas também pela nossa caminhada e as pessoas que encontrávamos. Era tudo simples. Mínimo. E ao mesmo tempo tão forte. Menos não só é mais, como pode ser efectivamente muito mais. E nós todos naquele momento sabíamos disso.